terça-feira, 28 de junho de 2011

O Dr. Morte da filosofia

Esse é um dos apelidos do australiano
Peter Singer, que levou a ética para
o terreno do chocante

Carlos Graieb

AP

Peter Singer: "A vida humana não tem mais valor que a dos outros animais"

trecho do livro  (ctrl e clique)

O homem que aparece na foto acima causa arrepios em muita gente. Ele já foi chamado de "Dr. Morte" pela imprensa dos Estados Unidos, de "propagandista de Herodes" por um líder católico australiano, de "pessoa mais perigosa da face da Terra" por ativistas políticos da Europa. Na Alemanha, tacharam-no de nazista. São palavras duras, que fariam supor que se trata de alguma espécie de psicopata. O australiano Peter Singer, no entanto, é apenas um filósofo. Filósofo moral, para ser mais exato, e atual responsável pela cátedra de bioética na universidade americana de Princeton – onde sua contratação, em 1999, ensejou passeatas e piquetes. Anos atrás, um dos livros de Singer, Ética Prática (Martins Fontes), foi editado no Brasil. Passou despercebido. Agora, um novo lançamento chega às prateleiras. Chama-se Vida Ética (tradução de Alice Xavier; Ediouro; 420 páginas; 33 reais). O volume reúne textos escritos ao longo de trinta anos e compõe um quadro abrangente do pensamento do autor – além de revelar os motivos da hostilidade contra ele.

O que causa tanta celeuma em torno de Peter Singer? Em termos simples, o fato de ele dizer que o aborto, a eutanásia e o infanticídio são justificáveis sob certas circunstâncias – quando, por exemplo, uma lesão cerebral torna impossível que um bebê tenha vida normal, ou quando a dor transforma em tormento a existência de um velho doente. Outras pessoas, no entanto, defendem essas causas sem despertar o mesmo tipo de represália. O problema, então, deve encontrar-se na forma e nos desdobramentos do raciocínio de Singer. Como de fato se encontra.

Avesso aos eufemismos e às fórmulas edulcoradas, Singer é com freqüência chocante. "Algumas crianças seriamente retardadas jamais atingirão o nível de inteligência de um cão", escreve ele, num trecho em que discute a possibilidade de submeter bebês deficientes à morte indolor. Singer, além disso, jamais se detém diante de uma conclusão inusitada ou incômoda ensejada pelas premissas de seu pensamento. Sua doutrina parte do utilitarismo formulado inicialmente, no final do século XVIII, pelo inglês Jeremy Bentham. Um dos pilares dessa corrente é que o ato moralmente justo é sempre aquele que resulta num acréscimo da felicidade geral, em detrimento da dor. Ao seguir com rigor essa idéia, até as últimas conseqüências, Singer conclui que bebês são "substituíveis" em algumas situações. "Quando decorrer da morte de um bebê deficiente o nascimento de outro bebê com maiores perspectivas de uma vida feliz, a quantidade total de felicidade será maior se for eliminada a criança deficiente. A perda de uma vida feliz é compensada pelo ganho de uma vida mais feliz ainda." Peter Singer, finalmente, faz distinções inaceitáveis. É difícil não se espantar com uma frase como "o ato de matar um bebê deficiente não equivale, moralmente, ao ato de matar uma pessoa". O autor explica que, em seu vocabulário, a palavra "pessoa" se aplica apenas a seres dotados de autoconsciência, de autonomia e de capacidade para vivenciar sensações como dor e prazer.

Curiosamente, quem conhecesse apenas os textos escritos por Peter Singer até 1975 seria incapaz de imaginá-lo causando ultraje algum dia. Polêmica, talvez, mas ultraje não. Seu primeiro ensaio importante, Fome, Riqueza e Moralidade (1971), afirma que nenhum cidadão de um país rico tem o direito de considerar-se moralmente decente quando se mantém omisso diante de notícias sobre a fome e o sofrimento, ainda que num lugar distante como Biafra ou Ruanda. Singer vai ainda mais longe: segundo ele, seria um imperativo doar dinheiro aos pobres até que o sacrifício próprio se tornasse comparável ao deles.

Quatro anos depois, Singer lançou um livro de grande impacto. Mistura de libelo e tratado filosófico, Liberação dos Animais (1975) denuncia o sofrimento de porcos, frangos, bois e ratos em fazendas de criação e laboratórios médicos. Segundo Singer, os humanos exercem uma espécie de tirania sobre os bichos. Ela se funda numa crença que, a seu ver, seria insustentável: a de que a vida do Homo sapiens é intrinsecamente mais valiosa que a das outras espécies. Singer batizou essa crença de "especismo", por analogia com palavras igualmente negativas, como racismo e sexismo. Esse livro já vendeu mais de 500 000 exemplares no mundo. É a bíblia do movimento de proteção dos animais, ao qual deu base filosófica e contornos políticos. O próprio Singer é um ativista ecológico, que já se enjaulou em praça pública para protestar contra experiências médicas em bichos, foi preso tentando fotografar a fazenda de criação de porcos de um ministro australiano e concorreu ao Senado de seu país natal pelo Partido Verde. Nem é preciso dizer que é vegetariano radical.

Peter Singer não é um neonazista (ele, aliás, descende de vítimas do holocausto, crime que já denunciou em várias oportunidades). Ele também não pôs em prática suas teses sobre a eutanásia quando sua mãe perdeu a consciência, vítima do mal de Alzheimer. Mas não há dúvida de que ele perde os limites ao defender com unhas e dentes a cidadela filosófica em que se enclausurou. Sua tentativa de enfrentar problemas éticos como se fossem teoremas baseados em "quantidades de sofrimento" e sua tendência a fazer comparações que ofendem a dignidade humana mostram como o fetiche da lógica e a soberba intelectual às vezes mais obscurecem do que clarificam uma mensagem.

SOBRE RATOS E HOMENS

AP

Uma bizarra experiência genética: fruto do "especismo"?

Quando se trata de justificar experiências com animais, os pesquisadores já dispõem de uma resposta pronta: será que nós estaríamos dispostos a deixar que morram milhares de seres humanos, quando eles poderiam ser salvos por uma única experiência, feita com um animal? A maneira de responder a essa pergunta hipotética é fazer outra pergunta: será que os pesquisadores estariam dispostos a realizar suas experiências utilizando um ser humano órfão, de idade inferior a 6 meses, se o único jeito de salvar milhares de vidas fosse esse? Se os pesquisadores não estiverem dispostos a usar uma criança humana, então sua prontidão em usar animais não-humanos revela uma injustificável forma de discriminação baseada no especismo, já que macacos, cães, gatos, ratos e outros animais são, mais que uma criança humana, conscientes daquilo que lhes acontece, auto-orientados e, no mínimo, tão sensíveis à dor quanto aquela.

Trecho de Vida Ética

mais que uma criança humana, conscientes daquilo que lhes acontece, auto-orientados e, no mínimo, tão sensíveis à dor quanto aquela.

 

Revista Veja

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